Peidar nas teorias filosóficas idealistas, masturbar-se na Ágora e defecar em público são algumas das ações mais subversivas ligadas ao cinismo grego. A corrente filosófica cínica foi sem dúvidas uma das mais insolentes de toda a história da filosofia, quem não diria insolência presenciar Diógenes soltar um peido contra a Teoria das Ideias de Platão ou ainda responder a concepção platônica de Eros com uma masturbação em público?
Resistente ao discurso idealizante, inaugurando assim o diálogo não platônico, o cinismo encontra em atitudes irônicas e subversivas uma forma de vida em que o fim último da existência é a prática da verdade. É preciso de insolência para dizer o que se vive e, como diz Peter Sloterdijk, a verdade depende de pessoas agressivas e livres.
Peidar a verdade, escarrar a verdade, mijar a verdade em praça pública doa a quem doer, eis talvez o único compromisso dos cínicos para com a vida. E o que poderiam temer perder ao transgredir a Razão dos filósofos atenienses? Nem fama, nem honra, nem prestígio, nem casa, nem família, nem riqueza – afinal, não se pode temer perder o que não se tem e, quiçá, o que nunca se quis.
A filosofia para a vida, a vida para a filosofia
Para os cínicos, assim como para os estoicos e epicuristas, vida e doutrina deveriam estar em perfeita harmonia. Isso equivale a dizer que o filósofo precisa levar à prática o que teoriza, visto que toda idealidade deve ser transposta para a experiência, e vice-versa.
Nesse sentido, a filosofia deve estar a serviço da vida, de modo que a prática mesma do pensamento que não se materializa em ação é estéril. E o objetivo primordial da vida não é outro senão: praticar dia após dia a virtude, libertando-se de toda dependência material, afinal, o caminho da felicidade está intrínseco ao homem e não apartado dele.
A vida conforme a natureza é levada às últimas consequências para os cínicos, ao passo que viviam como os cães (daí a etimologia do nome – cão em grego). E como tais, rejeitam qualquer doutrina das ideias sob a qual a matéria estaria à sombra, afinal, no cinismo a matéria encontra espaço de reflexão, sendo o corpo o agente performativo.
As animalidades como subversão e transgressão
Na Crítica da razão cínica, Peter Sloterdijk afirma que o cinismo é o precursor dos “argumentos nus” em uma posição que expressa o contrapoder. Isso se dá porque os cínicos, ao peidarem, defecarem e se masturbarem em público, utilizam-se do corpo – a matéria rejeitada – para refutar o idealismo grego.
A ideia de viver uma vida canina ainda corrobora para a tomada dos instintos animais como construtores de novas formas de se argumentar/viver. Se pensarmos na vida simplista dos cães, perceberemos que todas as suas expressões corporais são feitas em público sem qualquer pudor, além é claro destes animais se satisfazerem com qualquer comida e hospedagem.
É esse materialismo “sujo” que se manifesta como uma atitude de subversão. As animalidades suscitadas são legítimas formas estilísticas na corrente cínica, e também formas de argumentação. Enquanto materialismo dialético, o cinismo precisa desafiar a esfera pública, visto que é nela que o idealismo expressa suas ideias.
Tornar público o obsceno é uma forma de subversão. No cinismo não se fala contrariamente ao idealismo, mas vive-se contrariamente. O cínico tem então como necessidade levar a sensualidade reprimida para a Ágora, o subterfúgio das ideias, e demonstrar ao homem que possui por direito a expressão de sua corporeidade desinibida.
Ora, se o idealismo academicista despreza o concreto, então mija na academia! Que atitude de subversão seria maior do que desafiar o espaço público em que o logos impera soberano acima das baixezas do materialismo? Cagar, urinar e gozar, eis os verbos que engendram o movimento de transgressão dos filósofos cínicos frente à tradição filosófica idealista.
Diógenes de Sínope – o cínico dos cínicos
Considerado o máximo expoente da corrente cínica, Diógenes de Sínope tornou-se um filósofo muito conhecido na atualidade pela sua irreverência. Partilhando da filosofia da vida é compreensível que nada (ou muito pouco) tenha escrito, cercando-lhe uma série de anedotas compiladas pelo historiador Diógenes Laércio.
O que sabemos é que após ser exilado em Atenas, o filósofo teria se tornado um aprendiz do fundador do cinismo, Antístenes. Não demorou muito, para que Diógenes passasse dia após dia caminhando pelas ruas de Atenas, portando em uma das mãos uma lamparina acesa em meio à luz do dia e em outra um cajado, dizendo estar a procura de um único homem honesto.
Ao que nos cabe ainda sobre a sua vida, buscando desvencilhar-se de toda a prisão dos bens materiais, o andarilho filósofo teria adotado um barril como o seu lar. É que a Diógenes a verdade também se encontrava em viver na pele o que se pregava, não à toa, seus únicos lastros financeiros eram uma tigela, um cajado e um manto.
Aliás, de acordo com uma das anedotas mais famosas em torno de sua vida, diz-se que certa vez Alexandre da Macedônia ao encontrar o filósofo em seu banho de sol, teria-lhe oferecido a realização de um desejo, ao que o cínico esbanjado a sua ironia prosaica respondeu ao imperador: “retira-te da frente do meu sol”.
Diógenes de Sínope viveu lá seus dias de cão. Mas não pense você que ao cínico a vida simples e para a virtude fosse de todo ruim. O próprio Alexandre, O Grande, ao receber tamanha afronta respondeu que “se não tivesse nascido Alexandre, gostaria de ter sido Diógenes”, o que só nos mostra que eremita vulgar tinha lá seus admiradores.