Amor fati é um termo latino que significa literalmente amor ao destino. Em linhas gerais, isso significa que qualquer pessoa que pratique o amor fati abraçaria tudo o que lhe acontecesse, de grandes prazeres a grandes sofrimentos. Ganhar na loteria, perder um emprego, perder um ente querido ou ainda um grande amor — tudo seria enfrentado com o mesmo espírito imperturbável.
Embora o conceito tenha sido popularizado por Nietzsche, a ideia de amor ao destino nos leva a antiga filosofia greco-romana do estoicismo, uma vez que o conceito ecoa em uma série de princípios estoicos fundamentais. Entendamos mais a seguir!
Por que amar o destino, segundo os estoicos?
Segundo os estoicos, o universo segue uma ordem racional determinada por uma providência divina. Ao aceitarmos o destino, abraçamos algo que possui um propósito mais elevado e está racionalmente organizado; algo que transcende a nossa existência, sendo mais sábio e divino. Diante disso, os estoicos nos incentivam a praticar o amor fati, pois, em última análise, estamos submetidos a uma Natureza racionalmente estruturada.
Utilizando a dicotomia de controle, o filósofo estoico Epicteto sugere que devemos concentrar nossa atenção apenas naquilo que podemos influenciar pessoalmente e aprender a aceitar tudo o mais. Como aconselha em “A Arte de Viver”:
“A felicidade e a liberdade começam com a compreensão clara de um princípio: algumas coisas estão sob o nosso controle e outras não. Só depois de enfrentarmos esta regra fundamental e aprendermos a distinguir entre o que podemos e o que não podemos controlar é que a tranquilidade interior e a eficácia exterior se tornam possíveis”
Em outras palavras, ao invés de resistir às situações sobre as quais não temos poder para modificar, Epicteto propõe que ajustemos nossa mentalidade para aceitar as coisas conforme se apresentam. De maneira similar, em “Meditações”, o renomado filósofo estoico Marco Aurélio descreve um indivíduo feliz e virtuoso, enfatizando que ele deve amar e receber de braços abertos tudo o que ocorre em sua vida, incluindo tudo o que seu destino possa trazer.
Amor fati em Nietzsche
Embora a concepção transmitida por amor fati já fosse discutida pelos estoicos, a própria frase em latim ganhou força graças ao seu uso pelo filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, o qual, em sua obra de 1888, “Ecce Homo”, escreve:
“A minha fórmula para a grandeza de um ser humano é o amor fati: que não se queira que nada seja diferente, nem para a frente, nem para trás, nem para toda a eternidade. Não apenas suportar o que é necessário, muito menos escondê-lo… mas amá-lo”
Segundo Nietzsche, amor fati implica em aceitar o caótico e desprovido de propósito da existência e afirmá-lo apesar de. Dessa forma, o filósofo alemão rejeita a teleologia otimista do estoicismo, tornando a concepção de amor fati mais desafiadora.
Essa perspectiva nietzschiana difere ao recusar a ideia de que estamos avançando em direção a algum grande propósito estoico, um “plano divino”, ou a crença de que “tudo acontece por uma razão”. Ao contrário, Nietzsche nos instiga a reconhecer que tudo ocorre sem razão, que o cosmos carece de propósito, e ainda assim amar nossas vidas com a mesma intensidade.
Amar o incontrolável ou positividade tóxica?
A resposta imediata que podemos ter em relação ao amor fati é questionar como essa ideia pode ser aplicada diante de eventos terríveis que enfrentamos em nossa rotina diária. De fato, podemos dizer “sim” facilmente ao mundo quando o mundo diz “sim” para nós – mas e as pessoas que vivem com dores constantes ou que estão presas a inúmeros infortúnios? O que dizer daqueles a quem o universo quase nunca sorri? Como amar o destino nessas ocasiões? Não seria este um sinal de positividade tóxica?
Vale salientar que tanto os estoicos quanto Nietzsche não encaram de forma leviana as implicações do amor fati. Essa não é uma concepção originada em momentos de prazer; ao contrário, é um conceito desenvolvido para lidar com adversidades.
Os grandes pensadores estoicos romanos – Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio – enfrentaram desafios significativos em suas vidas. Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) serviu como conselheiro do imperador romano Nero e, eventualmente, foi exilado, sendo obrigado a tirar a própria vida.
Epicteto (50 d.C. – 135 d.C.) viveu como escravo antes de conquistar sua liberdade. Enquanto isso, Marco Aurélio (121 d.C. – 180 d.C.) enfrentou o período de seu governo como imperador de Roma marcado por crises constantes, seja de guerra ou peste, e a perda da maioria de seus filhos antes de sua própria morte.
Por sua vez, Nietzsche enfrentou desafios ao longo de toda a sua existência. A dor crônica, a solidão, a rejeição e o isolamento foram constantes companheiros em sua vida diária.
O fato de esses filósofos terem vivenciado a guerra, a escravidão, a dor intensa e a perda de entes queridos, e ainda assim defenderem o amor fati, é evidência da fé que depositavam nessa ideia e da compreensão de que existe vida apesar dos intempéries.
Como o estoicismo pode te ajudar a sofrer menos?
A distinção entre as visões de amor fati dos estoicos e de Nietzsche se torna evidente quando consideramos como cada um deles aborda o desafio de amar nosso destino diante de eventos dolorosos, como a morte prematura de um ente querido.
Os estoicos, por exemplo, enfatizam que o sofrimento mental que experimentamos resulta de nossa percepção e julgamento da situação, não da situação em si. Em outras palavras, é a nossa crença falsa e irracional sobre o evento, e não o evento em si, que nos causa dor.
Para aliviar o sofrimento, é necessário corrigir nossas falsas crenças, afastar-nos das paixões irracionais e enxergar nossa situação de maneira racional. No contexto da morte, isso implica reconhecer que todos fazemos parte da Natureza racionalmente ordenada dos estoicos e que a mortalidade é uma condição inexorável da vida.
A vida é um evento e, como todos os eventos, deve chegar ao fim. O tempo que cada um de nós recebe é um presente do cosmos que, como adverte Epicteto, devemos um dia restituir:
“Sob nenhuma circunstância diga ‘perdi uma coisa’, mas apenas ‘devolvi-a’. Um filho vosso morreu? Não, foi devolvido. A tua mulher morreu? Não, ela foi devolvida… És um tolo se quiseres que os teus filhos, a tua mulher ou os teus amigos sejam imortais; isso exige poderes que te ultrapassam e dons que não podes possuir ou dar”
Compreender e incorporar essa postura é, sem dúvida, mais simples em palavras do que na prática. No entanto, a filosofia estoica em relação ao sofrimento segue essa abordagem: é necessário reestruturar racionalmente nossos julgamentos até que o sofrimento seja dissipado.
A importância do sofrimento para Nietzsche
A maneira como Nietzsche propõe que conciliemos a dor com o amor ao destino não envolve enxergar o sofrimento como um equívoco corrigível, mas sim reconhecer que ele desempenha um papel fundamental e indispensável em uma vida plena.
E essa ideia da necessidade do sofrimento é herdada de Schopenhauer, que argumentava que o sofrimento era uma parte inevitável da existência humana devido à natureza intrínseca do desejo. Segundo o filósofo pessimista, a fonte fundamental do sofrimento está na incessante busca por satisfação de desejos, que são insaciáveis.
Já Nietzsche afirma em “A Gaia Ciência” que a grandeza não é possível sem sofrimento.
“Examinai a vida das melhores e mais fecundas pessoas e povos e perguntai a vós mesmos se uma árvore que deve crescer até uma altura orgulhosa pode dispensar as intempéries e as tempestades; se o infortúnio e a resistência externa, alguns tipos de ódio, ciúme, teimosia, desconfiança, dureza, avareza e violência não fazem parte das condições favoráveis sem as quais qualquer grande crescimento, mesmo da virtude, dificilmente é possível”
Caso existam aspectos em nossas vidas que consideramos valiosos, Nietzsche nos instiga a compreender que não podemos atribuir valor a essas coisas sem também valorizar todas as suas origens. Para o filósofo, o amor fati implica, assim, reconhecer a interconexão entre tudo e todos. A felicidade não pode ser isolada. Para afirmarmos a vida, é necessário afirmar tudo o que a acompanha, inclusive as adversidades.
Nietzsche vai além ao desenvolver sua doutrina do eterno retorno, desafiando-nos a viver de modo a desejarmos repetir a mesma existência continuamente. Cada desgosto, alegria e momento tedioso se repetiriam, uma e outra vez… Estaria você preparado para dizer ‘“sim” ao eterno retorno e enfrentar o desafio colocado pelo amor fati de Nietzsche?
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